quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Escuridão, o sentido que perdi!

Escuridão, o sentido que perdi!

Não posso aparentar fraqueza, acho que todos aqui idealizam um porto seguro em mim. Sou pai de família. Meu filho mais velho tem 16 anos hoje, exatamente hoje, 05 de outubro de 2008. Pela primeira vez vou votar depois de fiquei cego.

Achei que enfrentaria com mais coragem esse momento, mas estou com receio de sair do quarto, nos últimos três anos em que minha visão vem sumindo gradativamente, estava certo de que chegaria à perda total mais confiante sabendo ler pelo menos. Mas é muito difícil... Ai... (respira fundo)... Ai, ai...

- Pai, vamos... – falou da sala.
- Não você não vai comigo!! – gritei de volta.

Minha mulher apareceu depois do meu grito, inquieta.

- Amor... O que é isso!
- Meu bem, não quero que o Rafinha venha comigo. Quero ir sozinho, quer dizer, só contigo. Nós dois.
- Mas querido, ele vota em outra seção, a do colégio dele, então vamos os três juntos só até a esquina. Fique calmo vai dar tudo certo.

Infelizmente não conseguia sair sozinho ainda. Tenho que admitir, quero não dar trabalho, mas estou muito limitado, não me adaptei a escuridão total. Ah, Jesus! Então é isso vamos...

- Rafinha, vai chamar o elevador meu filho! Seu pai está quase pronto.
- Tá bom! Mãe, você teria alguns reais aí? É que o pessoal depois de votar vai para lanchonete, vamos ficar conversando, discutindo sabe, questões políticas.
- Sei... Política... Toma aqui, só isso que eu tenho...

Sapato, as duas meias estão aqui... Camisa abotoada... Bom, não falta nada.

- Meu bem – gritei – vem ver aqui, rapidinho, se as meias são da mesma cor!
- Olha, você está lindo, só me deixa ajeitar esses botões... Pronto, perfeito.
- Oh! Pai não vai votar errado hein! – risos – porque se você escolher com o mesmo critério que escolheu seu time, estamos fritos!
- Ah! Seu moleque, de olhos fechados eu ainda tenho mais noção que você. Ha, Ha, tem que comer muito feijão para me alcançar, e o seu time nem em cinqüenta anos alcança o meu!
- Chega de brincadeira crianças, vamos...

A nova vida que levo é desafiadora, desafio todos os sentidos que possuo, a cada segundo. Preciso estar bastante atento, concentrado, para desenvolver habilidades que me possibilite mais independência. Mas é cansativo. Que preço se paga para perceber o dom divino com o qual nascemos que nos permite ir ao banheiro sem escorar nas paredes... Andar nesse imenso mundo sem ninguém segurando seu braço... Liberdade.

- Opa, quase cai... O que houve?
- Um buraco na calçada...
- Tchau, mãe... Até mais pai...
- Vai com deus.

O garoto está crescendo. Que bom vê-lo exercendo sua cidadania. Eu sei que votar é o mínimo que se pode fazer. Ele é novo, não tem tanta experiência para escolher com segurança seu representante no executivo e no legislativo, mas quem tem, não é mesmo? Errar ao votar é compreensível. Votar por votar é que não concordo. A pessoa deve se esforçar o mínimo que seja para que se possa considerar que escolheu. É preciso fugir da imagem vazia.

- Chegamos, amor. Vem , por aqui... Cuidado... Tem um degrau aqui... Isso...
- Tem fila?
- Tem, mas é pequena não vamos esperar quase nada!
- Estou meio nervoso...

Um beijo. Essa mulher é tudo na minha vida. Passei os últimos meses tentando aprender a ler em braile. Ela me ajudou muito, depois de um dia de trabalho me ajudava até altas horas da noite... Mas acho que não vou conseguir...

- Vem amor é sua vez!
- Ele ainda assina, Senhora?

Ouvi a pergunta, deve ser a mesária. Ora, não sou surdo pô. Que merda!

- Olha eu ainda posso ouvir, tá bem?
- Descupe Senhor eu não quis...
- Tá certo... Amor guia minha mão aqui até o caderno.
- Senhora, ele vai precisar entrar sozinho tudo bem – ouvi a voz.
- Ah tá, mas eu sou a esposa dele, viu?
- Oh, não vou admitir que você continue falando com se eu não estivesse aqui, tudo bem? E essa aqui é minha mulher.
- Tudo bem, mas o voto é secreto, sua presença na cabine viola a lei eleitoral, não posso permitir, me desculpe!
- Deixa, está tudo bem, eu vou sozinho!

Conduziram-me até a cabine, já estava tomado pelo nervosismo. As pessoas da fila sussurravam impaciências. Agiam de forma mesquinha, não admitindo a perda de tempo que minha dificuldade lhes impunha. Aquilo foi me deixando extremamente triste, minha face talvez não escondesse a contrariedade que sentia. A garganta tinha um nó... raiva, angústia, tristeza, vergonha... Pude sentir as teclas da urna. O relevo das palavras em braile nada me dizia. A memória me traiu... Apertei seis teclas e não tive a certeza de que escolhera o meu candidato...

- Moça a minha esposa não pode vir aqui me indicar as teclas, depois ela sai...- supliquei, com a voz entristecida e embargada... As lágrimas já pressionavam os meus olhos, e eu entortava a boca para conter o ímpeto delas.
- Infelizmente não...

Eu sentia que multidão se inquietava, não percebia solidariedade, as pessoas se apresentavam tão cruéis... Meu filho, papai não pode escolher direito... Senti a lágrima percorrer meu rosto, apoiei as mãos na urna e não contive o choro, minhas pernas não eram mais comandadas por mim. Tremiam... Minha cabeça balançava negativamente, inconsolada. Apertei mais três teclas... A sensação é que perdi... Desolado, fui acolhido pelo meu amor. A esperança é que as outras pessoas escolham! Vou enxugar as lágrimas, tentar recuperar o sentido, mas...

(Leo Saoli, Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2008)