domingo, 16 de novembro de 2008

Você pensa demais!

- Eu penso antes, você, durante, esse é problema!
- Tá só porque eu errei já vai me colocar com os porcos?
- Não é isso, nem vem, eu sempre falo para você tomar cuidado com esse seu jeito de decidir as coisas, mas você nunca ouve ninguém.
- Tá, tá, você sabe tudo!
- Olha só, tá vendo! Essa conversa seria uma ótima oportunidade para você pensar e decidir sobre questões futuras, que com certeza vão ocorrer, mas você quer ouvir? NÃO.
- Diz aí, você quer mesmo prever o futuro?
- Putz, isso me irrita...
- Sério, fala para mim: você quer advinhar o que vai acontecer?
- Não, claro que não. Acontece que se hoje traçarmos ao menos um plano geral do que realmente queremos nessa vida, no momento em que a vida nos impuser um dilema, será facil decidir...
- E você acha que a vida é fácil assim...
- Não estou dizendo que a seja fácil a vida, estou argumentando que será fácil decidir... o acerto ou erro são normais...
- Então, o que você está me dizendo é que tanto faz, pensar hoje ou pensar na hora, se tudo pode dar certo ou errado da mesma forma...
-Acontece que a diferença está na medida do arrependimento. Uma pessoa arrependida pode passar a medir seus atos a partir de um erro, justamente por que não sabia o que queria num momento de decisão. Isso pode afetar a espontaneidade, a naturalidade com a qual ela deveria viver...
- Hm! Interessante...
- Ao passo que se você erra convicto de que se sua vida voltasse ao passado um milhão de vezes, a sua decisão seria a mesma, então...
- Então você é um tapado! Putz, um milhão e ainda não decorou o caminho certo? Vai me desculpar mas essa pessoa é uma porta...
- Ai meu Deus...
- Oh! Você pensa demais...

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Escuridão, o sentido que perdi!

Escuridão, o sentido que perdi!

Não posso aparentar fraqueza, acho que todos aqui idealizam um porto seguro em mim. Sou pai de família. Meu filho mais velho tem 16 anos hoje, exatamente hoje, 05 de outubro de 2008. Pela primeira vez vou votar depois de fiquei cego.

Achei que enfrentaria com mais coragem esse momento, mas estou com receio de sair do quarto, nos últimos três anos em que minha visão vem sumindo gradativamente, estava certo de que chegaria à perda total mais confiante sabendo ler pelo menos. Mas é muito difícil... Ai... (respira fundo)... Ai, ai...

- Pai, vamos... – falou da sala.
- Não você não vai comigo!! – gritei de volta.

Minha mulher apareceu depois do meu grito, inquieta.

- Amor... O que é isso!
- Meu bem, não quero que o Rafinha venha comigo. Quero ir sozinho, quer dizer, só contigo. Nós dois.
- Mas querido, ele vota em outra seção, a do colégio dele, então vamos os três juntos só até a esquina. Fique calmo vai dar tudo certo.

Infelizmente não conseguia sair sozinho ainda. Tenho que admitir, quero não dar trabalho, mas estou muito limitado, não me adaptei a escuridão total. Ah, Jesus! Então é isso vamos...

- Rafinha, vai chamar o elevador meu filho! Seu pai está quase pronto.
- Tá bom! Mãe, você teria alguns reais aí? É que o pessoal depois de votar vai para lanchonete, vamos ficar conversando, discutindo sabe, questões políticas.
- Sei... Política... Toma aqui, só isso que eu tenho...

Sapato, as duas meias estão aqui... Camisa abotoada... Bom, não falta nada.

- Meu bem – gritei – vem ver aqui, rapidinho, se as meias são da mesma cor!
- Olha, você está lindo, só me deixa ajeitar esses botões... Pronto, perfeito.
- Oh! Pai não vai votar errado hein! – risos – porque se você escolher com o mesmo critério que escolheu seu time, estamos fritos!
- Ah! Seu moleque, de olhos fechados eu ainda tenho mais noção que você. Ha, Ha, tem que comer muito feijão para me alcançar, e o seu time nem em cinqüenta anos alcança o meu!
- Chega de brincadeira crianças, vamos...

A nova vida que levo é desafiadora, desafio todos os sentidos que possuo, a cada segundo. Preciso estar bastante atento, concentrado, para desenvolver habilidades que me possibilite mais independência. Mas é cansativo. Que preço se paga para perceber o dom divino com o qual nascemos que nos permite ir ao banheiro sem escorar nas paredes... Andar nesse imenso mundo sem ninguém segurando seu braço... Liberdade.

- Opa, quase cai... O que houve?
- Um buraco na calçada...
- Tchau, mãe... Até mais pai...
- Vai com deus.

O garoto está crescendo. Que bom vê-lo exercendo sua cidadania. Eu sei que votar é o mínimo que se pode fazer. Ele é novo, não tem tanta experiência para escolher com segurança seu representante no executivo e no legislativo, mas quem tem, não é mesmo? Errar ao votar é compreensível. Votar por votar é que não concordo. A pessoa deve se esforçar o mínimo que seja para que se possa considerar que escolheu. É preciso fugir da imagem vazia.

- Chegamos, amor. Vem , por aqui... Cuidado... Tem um degrau aqui... Isso...
- Tem fila?
- Tem, mas é pequena não vamos esperar quase nada!
- Estou meio nervoso...

Um beijo. Essa mulher é tudo na minha vida. Passei os últimos meses tentando aprender a ler em braile. Ela me ajudou muito, depois de um dia de trabalho me ajudava até altas horas da noite... Mas acho que não vou conseguir...

- Vem amor é sua vez!
- Ele ainda assina, Senhora?

Ouvi a pergunta, deve ser a mesária. Ora, não sou surdo pô. Que merda!

- Olha eu ainda posso ouvir, tá bem?
- Descupe Senhor eu não quis...
- Tá certo... Amor guia minha mão aqui até o caderno.
- Senhora, ele vai precisar entrar sozinho tudo bem – ouvi a voz.
- Ah tá, mas eu sou a esposa dele, viu?
- Oh, não vou admitir que você continue falando com se eu não estivesse aqui, tudo bem? E essa aqui é minha mulher.
- Tudo bem, mas o voto é secreto, sua presença na cabine viola a lei eleitoral, não posso permitir, me desculpe!
- Deixa, está tudo bem, eu vou sozinho!

Conduziram-me até a cabine, já estava tomado pelo nervosismo. As pessoas da fila sussurravam impaciências. Agiam de forma mesquinha, não admitindo a perda de tempo que minha dificuldade lhes impunha. Aquilo foi me deixando extremamente triste, minha face talvez não escondesse a contrariedade que sentia. A garganta tinha um nó... raiva, angústia, tristeza, vergonha... Pude sentir as teclas da urna. O relevo das palavras em braile nada me dizia. A memória me traiu... Apertei seis teclas e não tive a certeza de que escolhera o meu candidato...

- Moça a minha esposa não pode vir aqui me indicar as teclas, depois ela sai...- supliquei, com a voz entristecida e embargada... As lágrimas já pressionavam os meus olhos, e eu entortava a boca para conter o ímpeto delas.
- Infelizmente não...

Eu sentia que multidão se inquietava, não percebia solidariedade, as pessoas se apresentavam tão cruéis... Meu filho, papai não pode escolher direito... Senti a lágrima percorrer meu rosto, apoiei as mãos na urna e não contive o choro, minhas pernas não eram mais comandadas por mim. Tremiam... Minha cabeça balançava negativamente, inconsolada. Apertei mais três teclas... A sensação é que perdi... Desolado, fui acolhido pelo meu amor. A esperança é que as outras pessoas escolham! Vou enxugar as lágrimas, tentar recuperar o sentido, mas...

(Leo Saoli, Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2008)

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Superação!

Superação!

- Tchau, tchau... até segunda pessoal, boa noite!

- Ufa! Ainda bem, sexta-feira, vou poder descansar um pouco...

- É, isso é ótimo, não é? Hoje ainda tenho uma missãozinha, combinei com as crianças de fazer uma festinha para ver o ídolo delas na TV. Vai ser uma farra! Você não quer passar lá em casa mais tarde?

- Ah, nem sei, estava pensando em sair um pouco, tomar uma cervejinha...

- Puxa! Você não chamou o elevador...

Ai meu Deus! Esqueci das pizzas! As crianças vão enlouquecer, acho que vou descer um pouco antes do meu ponto, naquele mercado de repente tem algo a essa hora.

- Amiga, acho que vou descer um ponto antes dessa vez...

- O que houve menina, deu a louca, vai fazer exercício a essa hora?

- Ai, deixa de ser boba, é que esqueci de comprar uma coisa para a casa... Você sabe se aquele mercado perto de casa está aberto até essa hora?

- Não sei... acho que sim, costuma ficar não é?

- Ai, ai...

Às vezes, percebo claramente a diferença entre a Telma e eu.. Estou tão cansada hoje. Ah, que bom, lá vem o ônibus... Nossa meia-hora de espera...Unf!

- Vamos Marta, está no mundo da lua?

- Não... Só me distrai.

A janela traz o vento, toca o rosto, distraio um pouco, das dores, do cansaço... Vou encontrar meus filhos, amores, espero o dia inteiro seus abraços. Nossa, queria ter uma caneta agora para escrever isso. Ai, ai... não vejo a hora de ver a carinha das meninas torcendo para valer, pulando, gritando... são tão poucos os momentos que passamos juntos... E o que ganho é tão pouco, me sinto tão impotente às vezes... Pára, pode parar, vamos pensar positivo, nem vem com esses pensamentos agora.

- Marta...

- Hm...

- Estou achando meio esquisito aqueles dois caras ali antes da roleta, eles não passam. Já estão a dois minutos conversando com o cobrador!

- Chega disso, Telma, você e suas neuroses...

- Não sei, não.

- Ai, que saco, ninguém vai assaltar nada, tá, pára...

Ai Jesus, me ajuda, esse cara aqui do lado não gostou nada do que falei, será que falei alto demais, agora fiquei tensa. Droga Telma! O cara tá rodando a roleta...Que ‘m’...

- Vamo, vamo! Passa tudo, vum bora pô!

Não acredito, era só o que faltava!

- Marta, não fica assim, o importante é que não fizeram nada com a gente!

- Aquele senhor foi surrado na nossa frente, que covardia! Imagina como vai ser quando ele chegar em casa?

- Ah, pelo menos ele tá vivo poxa...

- Eh! Parece que essa é a única coisa que esses políticos não arrancam da gente pessoalmente, a vida, mas fazem questão de deixar todo mundo vulnerável a qualquer ataque...

- Deixa disso, mulher! Você tem que pensar nas tuas meninas!

- Ah meu Deus, e agora! Fiquei sem nenhum real, ai meu Deus, vai ser uma decepção para elas, a gente combinou de fazer uma farra, não tenho nada em casa...

- Puxa! Pior que fiquei sem nenhum real também... Vê se alguém te empresta lá na rua...

- Ah! Não! Deixa, deixa! Não vou fazer dívida agora, elas vão ter que entender!

Unf! Tudo o que se quer é chegar em casa e ficar com os filhos, mas não é simples assim. A gente fica abandonada, completamente, horas esperando o ônibus que ainda vai lotado! Horas até chegar em casa! E pouco tempo depois já temos que acordar, quase não há tempo para viver!

- MÃÃÃÃE!!!!!

Esse coro sempre me faz esquecer de tudo!

- Vem cá minha filhas, dá um abraço na mamãe. Hmmmm, que gostoso... Olha, mamãe teve um probleminha, acabei chegando tarde não deu para comprar nada para nossa festinha e...

- AAAAh! Mãe!!

Puxa, não façam essas carinhas, ai, meu coração fica apertado...

- Não quero ver ninguém triste, hein!! Vamos ficar bem alegres para torcer pelo Brasil!

- Eh, mãe, então a gente pode trazer os lençóis aqui para sala para fingir que é a arquibancada?
- Vai mãe deixa, deixa...

- Hm! Vocês na são fáceis hein! Tá bom...

- Uhuuu!!!!

Todas as dificuldades, tanta falta de incentivo, tanto descaso. As vezes penso que ninguém aqui tem pátria, tá cada um por si, cada um fazendo o possível para se superar sem que o governo faça o mínimo que seja para auxiliar no desenvolvimento que nós brasileiros mereceríamos, deveríamos ser uma potência, mas sou feliz por conseguir cultivar o sorriso no rostinho dessas crianças... Olha só elas... estão ali, fazendo a maior farra, no meio da multidão que elas criaram... Haha... agora com certeza elas devem estar em Pequim...

- Olha meninas! Vai começar... Vai Brasil...

- Cielo, Cielo, Cielo...

Nossa que danadinhas, sabem até o nome do atleta...

- Mãe, você viu, você viu... Campeão! É campeão, é campeão...

Acho que elas imaginaram um Brasil inteiro... Amo vocês.

sábado, 12 de julho de 2008

Um choro de criança.

Mãos trêmulas. No peito, insuportável incômodo causado pela dificuldade de respirar. O ar preso dividia espaço com a vontade de berrar. Estava mudo. Sufocado. Explodir o silêncio com o grito entalado era a única salvação. Não consegui naqueles segundos. Inspirei três vezes, outra vez, porém não consegui expirar de imediato. Desespero. Olhar de perda. Tristeza...e um choro. Forte. Gritante. Lágrimas escorreram e a boca escancarada. Logo a seguir um abraço.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Não devia ter saído de casa!

Coloquei meu copo sobre o balcão, 'não devia ter saído de casa hoje', pensei. Estava numa boate, procurava fugir da solidão de um quarto vazio. Naquele momento, porém, só pensava na minha casa, na minha cama, derrotado pela solidão que sentia ali, com as roupas fedendo, no meio de tanta gente. Via as pessoas em preto e branco, muita fumaça de cigarro, a música batia em meus ouvidos, mas não havia lógica nas baladas, não havia sintonia entre ela e os movimentos dos dançarinos. Coloquei meu copo sobre o balcão 'não devia ter saído de casa hoje' pensei. Era a quarta vez que esse sentimento invadia meus pensamentos, já havia perdido a conta de quantas vezes colocara meu copo no balcão.
'Vou embora' decidi. Empurrei o copo com os quatro dedos da mão direita fazendo-o deslizar pelo balcão para longe de mim. Virei meu corpo e avistei a pista de dança decidido a atravessá-la até alcançar a saída do outro lado. Um mar de gente. No meu primeiro passo, um obstáculo. Esbarrei num cidadão que cruzava meu caminho num sentido perpendicular a trajetória que eu traçara. Não sei se a colisão se deu por conta dos copos que bebi, não sei se por imprudência do cidadão, ou pelo fato da pista estar lotada... Nem quis saber, só queria ir para casa.
Dei meu segundo passo e o terceiro. No quarto passo, a minha visão se perdeu. Senti minha coluna curvar, meus passos cruzaram-se, e num segundo meus cotovelos encontraram o chão. Tudo estava muito escuro. Não entendia mutio bem o que ocorria. De repente um impacto na barriga. Várias pernas se aproximaram e junto com as pernas, os pés. Estes procuravam meu rosto. Mesmo com as mãos tentando protegê-los, comecei a sentir um líquido quente escorrer. Sangue.
Não houve tempo para perceber a dor, antes de tudo escurecer, lembrei rapidamente do noticiário do fim de semana. Minha família passou como um raio na minha cabeça. 'Nunca mais iria vê-los'. Meu corpo desfaleceu.

sábado, 12 de abril de 2008

Tarde Bela...

Uma estrada vazia, sem curvas, para os dois sentidos apenas uivos dos ventos. Vasto verde à beira da estrada, provavelmente aquele homem estava ali em pé, olhando a estrada, já a algum tempo. Como se esperasse algo e não houvesse hora para acontecer, uma eternidade. A noite chegaria logo.


Naquela chuva,

no verão,
alguém lhe cobriu.

Naquela tarde,
você se machucou,
quem lhe deu a mão.

Se lembra dos domingos
o dia era tão lindo
alguém lhe abraçou...

Chegou feliz da vida
e com os amigos
foi viver

"Ha, ha, ha". Um risada gostosa, divertida. "E aí? Vamos lá?". Amigos reunidos, televisão ligada numa sala quadrada, um sofá confortável e uma mesa de centro. Jovens. Uma mulher nova e bela entra trazendo uma bandeja com petiscos para a turma. "Ah! Mãe valeu... o pessoal nem tá ligando muito para comida". "E vocês vão ficar bebendo sem comer nada... nada disso!". Horas depois, todos riam da última piada. Chega o momento de partir. "Cadê a chave?!?".

Vento no rosto
um lamento dos pais
um silêncio, um sufoco,
tormento...

Vento no rosto
um lamento dos pais
um silêncio, um sufoco,
tormento...carro fatal

O dia se despediu a tempo de não ver aquele homem se desfazer. O corpo imóvel que contemplava aquela estrada como se de cera fosse, sem alma, num segundo enrijeceu a face, enrrugou-se, num outro encolheu os olhos e logo fez chover, uma tempestade sobre o seu mundo. Seus ombros não aguentaram e uma corcunda se apresentou para incliná-lo, tirá-lo do eixo e fincar seus joelhos no chão...

"Tarde bela
Tu navegas em meu pensamento
te espero no silêncio desse tempo

A saudade é forte
Arde no meu peito
és o amuleto
que me faz ficar"




terça-feira, 1 de abril de 2008

Van experiência

Fim do dia. Cai a noite. cachorros latindo, rua de terra batida, casa simples, dois cômodos, família reunida. Mãe e três filhos: uma jovem senhora, um rapaz e duas meninas. Mesa posta, arroz, feijão e batatas cozidas. Hoje não tem carne.

- Meu filho, você precisa arrumar logo esse emprego, como foi hoje?
- Poxa! Não quero falar agora, deixa minha cabeça descansar um pouco!
- Sua irmã amanheceu com febre, não tem como você falar com aquele seu amigo do posto...
- Unf...


Claudionor desde que completara dezoito anos procurara auxiliar a mãe e as duas irmãs, mas era massacrado por constantes insucessos. Sua cabeça estava prestes a explodir. Todo dia o que mais lhe desagradava era ter que informar suas derrotas. O caminho longo, árido e cansativo que percorria todos os dias não incomodava. Angústia mesmo sentia quando sentava à mesa, no fim da jornada.

A noite passada atormentou sua cabeça. Quase não dormiu, mas bem cedinho abriu os olhos. Ergueu o corpo sentando no seu colchonete seco no meio da sala e contemplou à sua volta. Uma pequena TV, paredes descascadas da última enchente, sofá ausente e a porta... Símbolo do início de cada nova batalha.

Arrumou-se. Celular no bolso, chave de casa, tirou o brinco – “pareça o mais normal possível e mostre que tem caráter” ouviu de um grande amigo de seu pai, feirante da região, não concordou de início, mas àquela altura, não dava para arriscar -, abriu a porta.

Colocou os dois pés sobre o capacho, inflou seu peito com ar puro e contemplou com a cabeça erguida... Montanhas verdes. Olhou para as casinhas mais distantes, olhou para os lados e não avistou qualquer veículo. Rapidamente, então, pôs-se a marchar tal qual um atleta de marcha olímpica, porém, não tão rápido que o fizesse suar, nem tão devagar que permitisse ser atacado pela poeira que subiria da rua sem asfalto quando a primeira carroça o ultrapassasse.


Alcançou a primeira rua asfaltada e seguiu por ela. Não era o caminho mais curto, mas era o melhor caminho. Claudionor já havia percebido que para vencer seria preciso muita concentração, não poderia repetir os erros. Muitas vezes achou não ter conseguido o emprego em razão de chegar todo suado, mulambento. Seu caminho até a Capital do Rio era longo e ele não poderia mais falhar. Por isso, acordava mais cedo para poder fazer o trajeto com mais calma. Escolheu o caminho mais longo até o ponto da van, porém com ruas asfaltadas, o que evitaria a poeira permitindo desembarcar no Rio de forma apresentável.

Na hora de escolher a van a mesma coisa. Como acordava cedo, aguardava que saísse aquela van com ar condicionado, do contrário, tudo estaria perdido.


- E aí Nonô?! Vai tentar a sorte de novo – gritou um conhecido que se considerava mais íntimo do que deveria, sabe como é, né?

- É! - respondeu Claudionor, seco e concentrado, não alimentando o ímpeto do sujeito em continuar falando, aliás, odiava que o chamassem de Nonô.

- Quer saber Nonô, não sei o que você vai fazer lá embaixo, posso dizer com sinceridade, já trabalhei numa empresa muito grande lá no Rio e digo uma coisa: NÃO VALE À PENA! Todo mundo só quer que você rale, rale, rale e na hora de reconhecer o talento, de dar um aumento, uma folguinha a mais que seja, o que se recebe é um NÃO, bem alto e sonoro! A melhor coisa que você faz é ficar na tranqüilidade que a gente tem aqui, aqui todo mundo é irmão, é parceiro, não tem essa de crocodilo e...

Em determinado momento Nonô, quer dizer, Claudionor, já havia deixado de registrar as palavras do sujeito. Aplicava a técnica que desenvolvera chamada “Sei... Hum, hum... É mesmo...”. Consistia em reproduzir palavras que podiam sair automaticamente sem que precisasse refletir sobre a mensagem do interlocutor o que lhe permitia conversar sem gastar energia nem se estressar, assim, não magoava o interlocutor e todo mundo saía feliz e contente.

A van com ar condicionado então se posicionou, ela seria a próxima para o Centro do Rio. A primeira etapa do trajeto rumo ao sucesso tinha sido completada com perfeição. Claudionor sentou-se perto da janela na segunda fileira de bancos (a primeira costuma ser mais apertada) e sentiu uma sensação de vitória, sabe criança quando passa de fase naquele jogo de vídeo-game complicadíssimo, então, representava o semblante dele.

A van estava quase cheia, o que significava que logo iria partir e com isso Claudionor chegaria com folga ao seu destino. Motor ligado, ar condicionado na medida, pessoas conversando, o sol começava a ocupar o seu lugar. A porta da van se fecha e o carro começa a se mover. Do lado de fora, um grito:

- É Rio, vai pro rio, vai mais dois, mais dois...

Ao lado do Claudionor não havia ninguém o que significaria que as duas últimas pessoas obrigatoriamente sentariam ao seu lado. O grito Claudionor não registrou, pois estava muito concentrado, mas quando a van parou, ele levantou a cabeça.

- Meu Deus! – falou baixinho resignado.


Quando olhou pela janela, o que via retirava de sua face o ar de tranqüilidade que até então preservara. Caminhavam em direção à van duas pessoas, uma delas um rapaz magro, moreno, bigodinho da moda, cabelo amarelo... Até aí tudo bem. A outra pessoa: uma senhora imensa, gorda, com uma sacola grande, gigante... Uma... Em cada braço!

À medida que eles caminhavam em direção à van Claudionor, só pensava numa coisa, quer dizer em duas, digo, na verdade não pensava, não conseguia pensar, mas falava em voz baixa sussurrada e sofrida:

- Caracas, vai amassar toda a minha camisa... Tomara que ela sente na outra ponta...

É que cada fila de assentos de uma van tem três lugares (exceto a do fundão), se a senhora sentasse no meio, fatalmente sua camisa, cuidadosamente esticada fio por fio por um ferro de passar da energia racionada de sua casa, estaria fadada a virar maracujá. Por outro lado, numa iluminação divina, caso o maluco do bigodinho fosse solidário o suficiente para sentar no meio, e era essa sua prece, haveria uma chance dele, Claudionor, salvar sua camisa.

Não houve jeito, numa jogada de mestre o maluco do bigode, permitiu a ultrapassagem da senhora e foi o último a entrar. Claudionor, humildemente, registrou essa nova lição: ‘seja sempre o último a entrar’.

A senhora, então, sentou ao seu lado e Claudionor passou a tentar que seu estado psicológico também não fosse afetado por aquele baque.

- Ai, Ai – gemia a senhora tentando acomodar as duas bolsas em seu colo – Nossa, tá difícil, meu deus do céu, ai, ai – e já era o segundo sinal que a senhora dava para que alguém lhe ajudasse.

Com muita dor no coração Claudionor se fez de desentendido, já não bastava chegar ao Rio igual a um maracujá não poderia chegar mancando por carregar nas pernas uma daquelas sacolas, elas pareciam muito pesadas. Foi então que o mestre do bigode lhe deu mais uma lição. A van mal começou a andar e ele já dormira, quer dizer, ou Claudionor ajudava, ou a Senhora iria lhe mostrar que sim, poderia ir da Baixada até o Rio reclamando.

Mas não foi isso o que pensou, ele viu que sendo mesquinho não chegaria a lugar nenhum. E Já que estava todo amassado mesmo, não lhe custaria nada aquele gesto...

- Senhora, senhora – cutucou gentilmente aqueles braços que o espremiam contra a janela - dê-me aqui uma destas bolsas, eu lhe ajudo!

- Ai, meu filho, eu não quero lhe aborrecer...
- Senhora, por favor... – Claudionor, retirou-lhe a força com muito cuidado, pouca paciência e posicionou aquele peso todo em cima das pernas e pensou ‘só não posso começar a suar’.

A senhora sorriu e agradeceu dizendo que estava muito velha e que sofria de não sei o quê e.... “Sei... Hum, hum... É mesmo...”. Claudionor até buscou extrair daquele sorriso a lembrança de sua querida avó, ‘que saudade’, mas logo desistiu e passou a contemplar o que se passava pela janela e lá no fundo dos seus pensamentos uma lição "durma cedo".