sábado, 22 de dezembro de 2007

Não chora, vai passar!

- Não! Não tem como você explicar a minha existência! E se meu destino indicar no sentido do mal? Como saber quem sou? Prever o que pode ocorrer?

- Meu filho... Vem cá.

A mulher, de vestido estampado e olhos umidecidos pela dor que sua experiência ensinava a sentir em momentos como aqueles, abraçou o rapaz. Ambos estavam sentados num banco de rua. Os ventos balançavam seus cabelos enquanto a mulher trazia com as mãos a cabeça do rapaz para repousar em seu ombro.

O rapaz sofria. Um sofrimento infantil por coisas da vida. Era um jovem frágil de estatura mediana que acabara de saber que não saíra do ventre de sua mãe. A sensação de quem o viu no momento da revelação foi a de que o menino teve o coração retirado e no lugar colocado uma pedra de gelo. Seu corpo todo esfriou. Sua face entristeceu e expressou um sentimento de interrogação:

- O quê? Repetia sucessivamente.

A mãe sabia que não seria o fim do mundo revelar tal segredo, mas também sabia que até o rapaz entender isso, sofreria um pouco. Logo que a pedra de gelo derreteu as pernas do rapaz começaram a se mover e ele correu. Esperava no inconsciente que estivesse chovendo lá fora, para compor o momento, mas era o dia mais quente do ano. Dezembro, Rio de Janeiro.

O rapaz, que não era um atleta, logo cansou. Parou, respirou fundo, bem fundo mesmo e se desconstruiu em lágrima. Desmoronou. A mãe se aproximava acompanhada de um tio do rapaz. Antes de alcançarem o garoto, a mulher suplicou ao tio que os deixassem a sós naquele momento. Dois minutos de insistência e o tio cedeu, foi embora.

A cidade estava linda, a praia estava cheia e o rapaz nunca tinha visto tanta gente feliz em toda a sua vida e quanta gente bonita, mas seu coração martelava suas tentativas de renascer. A mulher se aproximou e o ergueu. Os dois sentaram no banco. O rapaz tinha os ombros caídos de depressão e derrota, foi quando ele esbravejou as dúvidas que lhe acometiam em relação a sua existência.

Enquanto abraçava sua mãe, ergueu os olhos, e, ainda com a visão embaçada com as fugas das lágrimas, viu na calçada uma criança correr em seu sentido, se desequilibrar e cair. Ao tocar o chão a criança exercitou a força dos seus pulmões num grito ensurdecedor de choro.

Rapidamente o rapaz alcançou a criança, foi o primeiro a chegar. Pegou a criança ainda de boca aberta, passou a mão com ternura em sua cabeça falando baixinho:

- Não chora, não chora, vai passar...

Os pais da criança chegaram e com um sorriso agradeceram antes de receberem a criança de volta. Despediram-se e seguiram... O rapaz observou a família desaparecer no horizonte e um senhor que desde a outra ponta da praia vinha desejando feliz natal para todos, fez o mesmo com ele. O senhor andava bem devagar com o corpo meio curvado, mas com um sorriso de criança. Com isso veio na mente do rapaz as primeiras palavras que ouviu logo após a revelação:

- Tu num vai chorar por isso!! Disse o tio insensível.

"É mesmo" já pensava o rapaz àquela altura.

domingo, 28 de outubro de 2007

Metal abandonado.

Desde que caíra pela última vez não houve um minuto em que não se dedicou para ser aproveitado ao menos uma vez mais. Ele fora abandonado no pé de uma amendoeira, naquele pé, rodeado por terra escura, com marcas de homenagem canina de toda espécie: toda espécie de marcas, toda espécie de cães.

Trazia na face o desgaste, sinais que apontavam uma existência difícil. No dia em que o encontrei, um sol de deserto agredia quem se atrevesse a encará-lo. Céu azul, uma imensidão azul. A minha pele negra suava como cachoeira e para fugir da agressão do sol, olhava para o chão, asfalto inundado pela ilusão do calor.

Enquanto meu peito inflava e esvaziava pela exaustão dos meus esforços, colocava as mãos nos joelhos e percorria a via, somente com o olhar. Lá estava ele: o metal abandonado.

No momento em que o avistei, meu corpo relaxou, soltei muito do pouco ar puro colhido por meus pulmões e ergui a cabeça olhando para o céu. Não dava graças a nada, não agradecia nada, ao menos naquele segundo. Apenas descansava mais um pouco até começar a caminhar em sua direção.

‘Como é possível que alguém seja tão descuidado a ponto de perder um metal tão bonito?’ Pensei, enquanto me abaixava para pegá-lo. Segurei o entre os dedos e ergui até a altura dos olhos. A sujeira impregnada em sua face era obstáculo desprezível para impedir minha paixão. Permaneci hipnotizado por seis segundos.

Faltou-me coragem para colocá-lo no bolso. Minhas roupas eram sujas. Mantive-o na altura dos olhos. Foi quando lembrei da minha pulseira de barbante que carregava enrolada no pulso já há algum tempo, desde que ganhara um papel fedido de um motorista com semblante de anjo.

Havia amarrado o papel para que não o perdesse, já que aguardava ansioso a realização da profecia do anjo: ‘guarde e coma algo com isso’. Não bastasse minha pobreza, ter que carregar, como um amuleto, aquele papel fedido e sujo, era incompreensível, mas até então nenhum alimento surgiu para que, acompanhado do amuleto, suprisse minha fome e assim ver cumprida a profecia.

Imediatamente desamarrei o amuleto e amassando-o coloquei no bolso. A intenção era amarrar o metal para não cometer o mesmo erro de seu último dono. Só que a barriga doía demais e com aquela riqueza poderia me fartar num banquete. Resolvi dá uma forcinha para a profecia.

Virei a esquina caminhando para o bar do Ademir e quase tropeço num cidadão que se encontrava sentado no chão com a perna esticada. Era o Cumbuca. O infeliz vivia ali com uma camisa de linho de manga comprida, amarela encardida, rasgada na altura de um dos ombros. Ao seu lado uma cumbuca vazia que ele dizia ser mágica.

‘Mágica?’ Indaguei um dia desses. ‘Mágica sim! Tira o olho!’ Gritou. O cara-de-pau tentou me convencer que de tempo em tempo uma nuvenzinha escura sobrevoava a cumbuca e despejava uma pequena chuva de metais preciosos. ‘Balela!’, falei.

Até hoje eu não acredito, mas houve um domingo em que ele me levou para jantar com os irmãos dele. Ele arcou com a refeição de todos. Numa praça grande, todos os irmãos formaram uma fila imensa, cada um recebeu a comida num lindo recipiente prateado, foi uma festa. Coisa fina. ‘Deus o abençoe’ dizia a moça jovem que entregava o alimento, devia ser uma prima distante, pois o Cumbuca nem olhou para ela direito, pura vaidade do poder.

Quando vi o Cumbuca sentado naquela esquina lembrei desse dia de fartura. Não seria justo da minha parte não convidá-lo para me acompanhar. Dei duas bicudas na perna dele e o danado não acordou. Abaixei bem perto do seu ouvido: OH! CUMBUCA DOOOIDO! O safado se assustou e bateu com a cabeça na parede. Ha, ha, ha... Quase morri. Sério. Estava fraco por causa do calor e da fome, não consegui respirar por cinco segundos com a crise de riso que me acometeu. Fazia dois dias que não ria assim, de gargalhar.

- Seu narigudo maluco! Já não te avisei para não fazer isso. Agora a nuvem se dissipou! Inferno!
- Calma... Eu vim justamente te convidar para almoçar lá no Ademir.
- Vai sozinho...
- Por quê?
- O Ademir não me quer pelas redondezas por conta do porre de quarta.
- Você bateu nos clientes de novo?
- VAI, VAI, SAI DAQUI! SAAAI..., gritou.

Segui meu caminho, mas resolvi que traria um pouco de comida para o Cumbuca. O Ademir era um cara legal, mas quando ficava bravo dava umas tapas fortes na nuca da gente, o melhor para o Cumbuca era não aparecer mesmo. Andei de cabeça baixa fugindo do sol por uns dois quilômetros. Não avistei nenhum outro metal. ‘Puxa vida, o Ademir está fechado’.

- Seu Valdir?

Seu Valdir era um maluco que foi preso pela família real numa caixa de ferro e condenado a entregar papéis fedidos também, mas que contavam as histórias da cidade. Certa vez o Cumbuca apareceu num desses papéis, quando, depois de um porre, fora levado para passear com uns soldados da corte. Naquele dia não o vi dormindo na esquina.

- Fala Pelica, mas fala daí... Não... Vai para o outro lado, contra o vento... Isso! O que você quer? Resmungou Seu Valdir.

- Hoje vou à forra, Seu Valdir! Sou rico! Olha o metal que achei!

- Cruzado, Pelica?!? Ha, ha, ha... Só você mesmo para me fazer rir.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Estágios

Estágios.

Mergulhão, Centro do Rio de Janeiro. Desembarco para mais um dia de “guerra”. Na verdade uma guerrinha boa que é até divertida. Um estagiário no Centro passa por verdadeiras peças teatrais a cada instante. A começar pelo horário de chegada.

- Puxa, vida! Um hora e quarenta, não vai dar.
- É rapaz! O trânsito hoje não tá legal, não ta fácil.
- Odeio ter que correr...

Até que não chama tanta atenção uma pessoa de terno e gravata. No Centro é até comum. Uma pessoa de terno e gravata, correndo... o que é que tem, né? Pode ser algum prazo, todo mundo entende. Agora o que não deve ser corriqueiro é uma pessoa, de terno e gravata, se esforçando ao máximo para correr cada vez mais rápido – postura de atleta, rosto apavorado como se não respirasse – e com certeza com um expressão facial muito, mas muito engraçada. Só isso explicaria a fato de todo mundo estar me olhando.

Na certeza de que não ganharia nada com isso, já que o atraso estava consumado, cheguei vivo.

- Boa tarde, boa tarde... E aí, Geraldo, tudo certo? Rosana, o Doutor perguntou por mim?
- Perguntou sim. Está lá na sala dele quer falar com você.
- Xiiii...

Bom, quando se tem uma só opção podemos até descansar o cérebro. Vamos lá. Não tem outro jeito, né? Com certeza hoje ele veio de bom humor. Acho que não é nada demais. Calma, rapaz, calma! Respira fundo...

- Boa tarde, Doutor.
- Unf!! Não tão boa assim. Você está com algum problema. Está havendo alguma coisa. O estágio não está te agradando...
- Não é isso, doutor, é que...
-Hoje você só escuta! E não quero saber mais de atrasos. A vida não admite atrasos. O direito não admite atrasos. E será melhor para você compreender isso e... Quando eu era estagiário... Porque a vida... Eu falo isto para o seu bem e... Bom por hoje é só, vá fazer as diligências que estão na sua mesa e juízo.

É chato quando chamam a nossa atenção, poxa, foi legal da parte dele ter dado aqueles conselhos. Tudo bem, mas não precisava ter gritado. Isso incomoda... Vou esfriar a cabeça chutando essa latinha, o legal de estagiar assim é poder dar uma volta de vez em quando...driblou um, eh, driblou o segundo, olé, tam tam tam... tam tam... tam..., e a galera vai à loucura... Passa por debaixo das pernas do zagueiro e...

- Oh, oh! Não sabe brincar não, é?

Poxa vida, o cara levou a latinha... sacanagem...

Forças

Forças

Rio de Janeiro, 01 de julho de 2003.

1.
Prometa-me, de uma vez por todas, que nunca deixará de acreditar que vai conseguir, continue buscando. Não deixe de tentar alcançar seus objetivos. Parece repetitivo, mas é o que realmente gostaria de lhe dizer.

A gente pensa que as forças do universo se refletem apenas nas grandes invenções da natureza, nos ventos, nos mares, furacões e tempestades; na Lua, nos vales, no Sol, mas percebi outro dia – um dia desses em que não se percebe nada porque o Sol não queima e o frio não incomoda – observando o mundo da janela de um ônibus, que as forças se encontram onde menos esperamos e nos lugares onde menos nos preocupamos com isso. Muitas vezes, passamos por universos maiores que o nosso e nem percebemos sua grandeza de tão pequenos que são.

Olhando da janela tudo estava normal, as pessoas andavam normalmente apressadas e com olhares cansados. Já se aproximava o final do expediente de um dia corrido. Num círculo, trabalhadores riam de alguma piada enquanto que outros passavam por eles correndo para alcançar o ônibus. Um garoto de camisa folgada e com um sorriso distribuía folhetos nos quais dizia ‘DINHEIRO FÁCIL’ observando um rapaz que varria a rua e brincava com um senhor barrigudo de camisa desabotoada que passava vendendo guarda-chuvas num dia lindo na Cinelândia.

Aquele espaço imenso calçado com pedras portuguesas deve caber um milhão de pessoas. As construções antigas da Biblioteca Nacional, Câmara do Vereadores, Theatro Municipal ajudam a manter a Cinelândia presa ao passado. Um mundo próprio. Encontrava-se ali uma mendiga sentada na entrada do metrô numa bancada de cimento. Seus pés não tocavam o chão. Suas mãos enfiadas entre as próprias pernas, com os braços rígidos, como se sentisse frio apesar do calor, lhe davam um tom sombrio de quem não compartilha do nosso mundo. Seu tronco balançava sem parar, para frente e para trás, para frente e para trás, para frente e para trás...

Minha atenção, porém, foi atraída para uma cena que ocorria ao fundo. Atrás das pessoas que passavam de um lado para o outro avistei uma senhora. De longe percebi que caminhava com dificuldade, sua perna direita, a cada passo, vinha arrastada pela esquerda. Seu andar se destacava na multidão. Segurava na mão esquerda uma menina que presumi ter não mais que quatro anos.

2.
Era uma mulher de gestos fortes e decididos, com um ar protetor, seus cabelos cinzentos não escondiam que o tempo lhe havia castigado, mas seus olhos impressionavam porque descreviam a noção exata de seus anos de juventude e foi o que confirmei quando olhei a menina e vi a senhora retratada, conforme diziam seus olhos, mas sem rugas e cicatrizes, sem marcas. Estava presente na criança o mesmo ar de juventude eterna.

A menina de cabelos dourados parecia iluminada, transmitia uma sensação de alegria tácita mesmo que sua expressão naquele momento fosse de espanto. Enquanto a senhora segurava a menina pela mão e, devido ao mancar, puxava a cada passo com trancos que faziam seus cachos balançarem, ela apontava para frente dizendo algo que não pude decifrar mas que lhe forçava a fazer um bico de peixe. Logo após alguns metros, passou a olhar para trás jogando o peso do corpo para baixo dificultando o avanço da senhora e tentando chamar a atenção para alguma coisa que havia ficado para trás. A senhora, então, com feição de impaciência, deu-lhe um tranco mais forte trazendo a menina para junto de si e em seguida desferiu frases e em alto som que obrigavam suas sobrancelhas a enrugarem ainda mais a testa. A menina não chorou, não esperneou, de cabeça erguida e com os dois braços descansados para baixo, ficou estática, mas com uma força tão grande no olhar que não saberia responder qual sentimento era aquele e o que se passava naquela cabecinha. Antes, porém, que acabasse o sermão a menina se soltou partindo numa carreira em sentido contrário ao de sua mãe, desviando das pessoas que, num ato de reflexo, protegiam suas carteiras.

O Rio de janeiro não passa por um momento muito bom, a violência ecoa por aqui como nunca vi antes. Imagino o desespero daquele senhora vendo aquela criança inocente sair correndo por um floresta obscura de pessoas desconhecidas. Lembro-me bem do seu semblante. Menos de um minuto se passou para que sua feição passasse do espanto à serenidade e daí a um estado de alegria e emoção. Um sorriso foi surgindo no canto de sua boca e antes de tomá-la por inteiro uma lágrima correu ao seu encontro para que, juntos, sorriso e lágrima, testemunhassem aquele momento que fazia a senhora esquecer um pouco todos os tormentos do cotidiano e sentir a vida ao menos mais uma vez. Seu coração pulava. Naquele instante a senhora se lembrava do porquê de seu olhar manter para sempre um espírito juvenil e apesar de sua deficiência também correu. Não se importou com todos os problemas e conseqüências que o esforço poderia acarretar e imprimiu um ritmo que deveria ser o mais forte de sua vida, motivada por um sentimento impulsivo e irracional de adolescente quando se apaixona.

3.
Quando vi a menina saindo em disparada senti um pavor com a situação. Não entendia da onde vinha a segurança de partir sozinha no meio da multidão. Temi por ela. Como podia uma menina, e naquela idade, não ter medo de um mundo tão grande a sua frente? Foi então que ela parou diante de uma criança de sua idade que chorava insistentemente sozinha, solitária, deserta e suja, esfregando uma das mãos na outra sem parar, num angustiante movimento de fricção como o de quem lava as mãos, de joelhos e com um melado descendo do pequeno nariz. A menina dourada de pureza insuperável, sem preconceitos ou discriminações, se inclinou e abraçou a criança que chorava de forma um pouco desastrada, encostou seu rosto no rosto dela e, ainda com os braços enlaçados na criança, lhe deu um beijo na bochecha.

A senhora, quando as alcançou, contemplou por alguns segundos a cena e depois colocou as mãos no joelho se inclinando para frente. Não notei se dizia algo à criança ou se recuperava o fôlego, mas isso já não importava mais. Senti um vento no rosto, percebi que o ônibus partia. Avistei de longe a senhora pelo seu andar, e de cada lado havia uma criança. Uma, era a menina iluminada de cabelos dourados e cacheados que tivera forças para ajudar mesmo não sabendo ao certo o que acabara de fazer; a outra, a criança que já não chorava mais e que não consegui distinguir se era menino ou menina.

Milhares de pessoas passavam naquele local, uma infinidade de histórias se cruzavam a todo o momento e se a menina não tirasse forças de sua pequenez a criança remelenta choraria até hoje na minha mente e nunca mais pararia, já que o ônibus partiria e não mais poderia voltar àquele dia, naquele instante. As duas pequenas mãos estariam se esfregando uma na outra numa angustiante repetição eterna como o que deve ter acontecido com a mendiga que até hoje está se balançando para frente e para trás sentada em algum lugar do Centro do Rio.

Perderia milhares de anos para achar força tão grande em tão pequeninos gestos, nas pequenas coisas, numa criança que olha uma folha pegar carona numa brisa. De fato tenho sorte.

Forças estão dentro de nós, tenho certeza. Não se preocupe comigo e termine seus estudos. A distância não apagará o que vivemos juntos. Parece repetitivo...mas é o realmente gostaria de dizer.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Vizinhos: loucos.

- Que loucura meu Deus, que loucura!

Uma voz gritava, gritava mesmo. O que se vai pensar, né? Alguém está enlouquecido, pois da forma como essa mulher esbraveja, parece que ela tem certeza de que o louco é louco mesmo e portanto aquilo só poderia ser...

- Eu não acredito! ESSE HOMEM É LOUCO???

Ah! Pronto, está em dúvida, se decide logo mulher e volta a dormir, ainda devem ser oito e meia da manhã. Virei o rosto, para me esconder entre almofadas, tentando proteger o sono daquela histeria. Vocês podem até pensar: insensível! Alguém gritando a essa hora, pode ser grave. Mas de vez em quando essa maluca tem uma pane e estressa todo o prédio.

Caramba! Minha cabeça dói demais! Parece que vai explodir! Alguém com uma chave inglesa aperta, aperta e apeeerta! Ah! A cada latejar chego a enrrugar a face. Não aguento mais de dor. Se a porcaria do time não tivesse perdido teria bebido menos. E ainda esse sofá desconfortável...

- ESSE IDIOTA! Vou processá-lo por isso!

Agora o louco é idiota. Está se valorizando, mas vamos nos concentrar, abracei a almofada e fechei os olhos com força para retomar aquele sonho muito doido. Ah, acho que não vou conseguir dormir e...

- Peraí, que loucura é essa? Onde é que estou?

Levantei num pulo, e me esburrachei no pé do sofá. Espalhado no chão, com os braços abertos, virei os olhos para um lado e para o outro. Foi só o que consegui. Estava num lugar esquisito, com jeito de século passado, um cheiro de naftalina invadiu minhas narinas e abafou o som de alguns xingamentos que vinham do outro lado de uma porta velha, com a tinta meio descascada. Desorientado, mas percebendo um sentimento de derrota no coração, não consegui raciocinar e lembrar o porquê estava de calças, naquele sofá.

- TOC, TOC, TOC, amor é você que está aí? Abre a porta, a vizinha me ligou enlouquecida...

domingo, 30 de setembro de 2007

Gigantes

Um barulho de multidão pareceu me despertar. Abri os olhos devagar, estava ofegante, respirava com dificuldade. O ar estava empoeirado e uma neblina de fumaça confundia minha visão, meu corpo teimava em querer dormir, exausto. Tão logo o cérebro conseguiu processar as imagens e perceber o que ocorria, uma dor ensurdecedora tomou conta do meu peito. A respiração virou um exercício desgastante. A dor pulsava e irradiava para todo o corpo. Reparei, então, que estava deitado no chão da rua. O asfalto de tão quente já não queimava mais, sentia frio. As feridas abertas nas costas ardiam, mas a dor no peito...

- Aaargh!

Coloquei a mão direita no núcleo da dor e percebi um buraco... Muito sangue, droga! Algumas pessoas corriam ao som de tiros e gritos. Um embaralhar de pernas que me desorientava. Já não compreendia bem os sons para distinguir se vinham em minha direção ou fugiam. No asfalto uma sombra ameaçou se aproximar e começou a me cobrir. Eram monges.

Por cinco segundos permaneci assustado, mas a dor que me esmagava no asfalto trazia a perfeita noção de que eu fazia parte daquele cenário. Aqueles jovens de veste grená passavam por mim e me olhavam, seus olhos confortavam meu coração e minha dor pareceu fazê-los maiores.

Eles eram gigantes agora. Minhas pálpebras pesaram e um sono irresistível invadiu minha alma. Na sombra entre o último suspiro e o fechar dos olhos vi os tanques recuarem... Um silêncio...

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Concentração!

Um dia desses me ocorreu pensamento muito louco. Quer dizer, pensamento não, sentimento... Estava em casa em mais uma sessão de estudos quando embaixo da mesa de vidro escuro, na qual apoiava meus livros e cadernos comecei a perceber uma movimentação frenética para lá e para cá.

Era noite e para economizar na conta de luz utilizava uma pequena luminária para conseguir enxergar o que lia. Essa situação dava ao ambiente um toque de penumbra e a impressão que eu tinha era a de que o silêncio aumentava quanto menos luz houvesse.

Aquela movimentação inquietante embaixo da mesa atrapalhava meus estudos, volta e meia surpreendia meus pensamentos tentando advinhar do que se tratava ou ainda se era alucinação da minha mente conturbada com tanta teoria.

A situação acabou se agravando. Quando percebia a movimentação do objeto não identificado bem ao fundo do meu raio de visão eu virava a cabeça em sua direção e... Nada. Já havia sumido. Pronto, o estudo já estava esbulhado! Não ia descansar enquanto não entendesse o que acontecia: estava eu maluco ou existia sim algo se movendo enlouquecidamente?

Esperei uns trinta segundos quando, enfim, se apresentou um cidadão menor que a ponta da minha caneta Bic, com duas asas transparentes batendo igual a um idiota na porcaria do vidro da mesa!

Era um daqueles bichinhos de luz, o maluco devia estar achando que o vidro não existia e voava na direção da luz quando de repente... POF!

Ha, ha! Coitado. Fico imaginando seus pensamentos confusos, sem entender o que ocorre: 'por que diabos não consigo alcançar a luz? Ela está ali, estou indo em direção a ela... Bem até aqui tudo certo... Só que... POF!' Ha, ha! Muito burro!

Zuei mesmo! Pô... Fica atrapalhando minha concentração. O bichinho estava fazendo pior do que o chato da biblioteca. Com este pelo menos é só fazer um XIIIIU que ele pára de atrapalhar. Se bem que muitas vezes o mané, solidário que só, passa a falar baixinho, sussurrando... Putz... que raiva, não, não, prefiro o...

- POF!
- Oh, maluco! No caderno não! Sai, Sai, vamos rapaz...

O retardado do bichinho deu de cara no caderno, daquele tipo com espiral.

- Vamos seu doido! Você está pedindo um peteleco... Ha, ha! Olha isso...

Ele estava entrando e saindo daqueles furos nas folhas do caderno por onde passa o arame do espiral. O que esse cidadão está pensando da vida? Que a vida é uma folha de papel? Imagine se eu fosse um bichinho desses... acham que ficaria perdendo tempo?

- Vai ler um livro, evolui! Por isso é que está aí, nessa escala da evolução, dando com a cara no vidro sem entender o que acontece! Atrapalhando a vida de quem está tentando melhorar...

Quer saber, vou tirá-lo daqui, fazê-lo voar... Assoprei o bicho para longe. Caramba, ele deve ter caído lá naquele canto escuro. Ah! Ele vai sobreviver!

- Vai seu prego... acende a outra luz. Daqui a pouco enche daqueles bichinhos de luz e aí não conseguirá se concentrar...

- Tá.. tá bom.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Um dia que não acabou...



Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2007.


- Vamos filho, vai, sobe!

Pegamos o ônibus naquele dia, início de tarde. A memória me trai agora, não consigo lembrar para onde seguíamos. Era um lugar distante, disso eu lembro.

Eu já era um adolescente, devia ter doze, treze anos e conseguimos um assento próximo ao motorista, naqueles bancos altos. Estávamos ali, um do lado do outro, seguindo junto.

Conversamos durante todo o percurso descobrindo um pouco mais um do outro. Num certo momento dormi. A segurança de estar ao lado do seu pai ombro a ombro, não pode ser expressa em palavras, não por mim, por isso não há como reproduzir aquele sentimento. Dormi apoiado em seu ombro... sei que me sentia seguro, sentia conforto, mesmo naquele balanço do ônibus. Talvez tenha até sonhado.

A viagem continuou e noutro momento me levantei para dar lugar a uma senhora que acabara de entrar. Fiquei ali, em pé, todo orgulhoso de ter feito isso na frente dele, como nas épocas em que ele nos levava, eu e meus irmãos, para jogar futebol, nosso técnico, conselheiro.

Logo voltei a me sentar ao seu lado... Imagine uma criança, um adolescente que seja, desembestando a falar, com gestos e sorrisos, eufórico, às vezes com lágrimas ou mesmo em silêncio, tristezas e felicidades, sobre tudo o que ocorre em sua vida e ao seu lado um senhor olhando, observando, sereno, com um abraço, um carinho, ensinando a ela que vencer nem sempre é chegar em primeiro, que na maioria das ocasiões, vencer é chegar...

Aquele dia nunca irá acabar, o ônibus não parou ainda e continua lançando vento através das janelas, vento que acalma fazendo dormir e até hoje desembestado conto aventuras e tropeços, e ele deve se emocionar as vezes, mas hoje suas lágrima só vem quando chove...

(Alves Deotono)