quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Forças

Forças

Rio de Janeiro, 01 de julho de 2003.

1.
Prometa-me, de uma vez por todas, que nunca deixará de acreditar que vai conseguir, continue buscando. Não deixe de tentar alcançar seus objetivos. Parece repetitivo, mas é o que realmente gostaria de lhe dizer.

A gente pensa que as forças do universo se refletem apenas nas grandes invenções da natureza, nos ventos, nos mares, furacões e tempestades; na Lua, nos vales, no Sol, mas percebi outro dia – um dia desses em que não se percebe nada porque o Sol não queima e o frio não incomoda – observando o mundo da janela de um ônibus, que as forças se encontram onde menos esperamos e nos lugares onde menos nos preocupamos com isso. Muitas vezes, passamos por universos maiores que o nosso e nem percebemos sua grandeza de tão pequenos que são.

Olhando da janela tudo estava normal, as pessoas andavam normalmente apressadas e com olhares cansados. Já se aproximava o final do expediente de um dia corrido. Num círculo, trabalhadores riam de alguma piada enquanto que outros passavam por eles correndo para alcançar o ônibus. Um garoto de camisa folgada e com um sorriso distribuía folhetos nos quais dizia ‘DINHEIRO FÁCIL’ observando um rapaz que varria a rua e brincava com um senhor barrigudo de camisa desabotoada que passava vendendo guarda-chuvas num dia lindo na Cinelândia.

Aquele espaço imenso calçado com pedras portuguesas deve caber um milhão de pessoas. As construções antigas da Biblioteca Nacional, Câmara do Vereadores, Theatro Municipal ajudam a manter a Cinelândia presa ao passado. Um mundo próprio. Encontrava-se ali uma mendiga sentada na entrada do metrô numa bancada de cimento. Seus pés não tocavam o chão. Suas mãos enfiadas entre as próprias pernas, com os braços rígidos, como se sentisse frio apesar do calor, lhe davam um tom sombrio de quem não compartilha do nosso mundo. Seu tronco balançava sem parar, para frente e para trás, para frente e para trás, para frente e para trás...

Minha atenção, porém, foi atraída para uma cena que ocorria ao fundo. Atrás das pessoas que passavam de um lado para o outro avistei uma senhora. De longe percebi que caminhava com dificuldade, sua perna direita, a cada passo, vinha arrastada pela esquerda. Seu andar se destacava na multidão. Segurava na mão esquerda uma menina que presumi ter não mais que quatro anos.

2.
Era uma mulher de gestos fortes e decididos, com um ar protetor, seus cabelos cinzentos não escondiam que o tempo lhe havia castigado, mas seus olhos impressionavam porque descreviam a noção exata de seus anos de juventude e foi o que confirmei quando olhei a menina e vi a senhora retratada, conforme diziam seus olhos, mas sem rugas e cicatrizes, sem marcas. Estava presente na criança o mesmo ar de juventude eterna.

A menina de cabelos dourados parecia iluminada, transmitia uma sensação de alegria tácita mesmo que sua expressão naquele momento fosse de espanto. Enquanto a senhora segurava a menina pela mão e, devido ao mancar, puxava a cada passo com trancos que faziam seus cachos balançarem, ela apontava para frente dizendo algo que não pude decifrar mas que lhe forçava a fazer um bico de peixe. Logo após alguns metros, passou a olhar para trás jogando o peso do corpo para baixo dificultando o avanço da senhora e tentando chamar a atenção para alguma coisa que havia ficado para trás. A senhora, então, com feição de impaciência, deu-lhe um tranco mais forte trazendo a menina para junto de si e em seguida desferiu frases e em alto som que obrigavam suas sobrancelhas a enrugarem ainda mais a testa. A menina não chorou, não esperneou, de cabeça erguida e com os dois braços descansados para baixo, ficou estática, mas com uma força tão grande no olhar que não saberia responder qual sentimento era aquele e o que se passava naquela cabecinha. Antes, porém, que acabasse o sermão a menina se soltou partindo numa carreira em sentido contrário ao de sua mãe, desviando das pessoas que, num ato de reflexo, protegiam suas carteiras.

O Rio de janeiro não passa por um momento muito bom, a violência ecoa por aqui como nunca vi antes. Imagino o desespero daquele senhora vendo aquela criança inocente sair correndo por um floresta obscura de pessoas desconhecidas. Lembro-me bem do seu semblante. Menos de um minuto se passou para que sua feição passasse do espanto à serenidade e daí a um estado de alegria e emoção. Um sorriso foi surgindo no canto de sua boca e antes de tomá-la por inteiro uma lágrima correu ao seu encontro para que, juntos, sorriso e lágrima, testemunhassem aquele momento que fazia a senhora esquecer um pouco todos os tormentos do cotidiano e sentir a vida ao menos mais uma vez. Seu coração pulava. Naquele instante a senhora se lembrava do porquê de seu olhar manter para sempre um espírito juvenil e apesar de sua deficiência também correu. Não se importou com todos os problemas e conseqüências que o esforço poderia acarretar e imprimiu um ritmo que deveria ser o mais forte de sua vida, motivada por um sentimento impulsivo e irracional de adolescente quando se apaixona.

3.
Quando vi a menina saindo em disparada senti um pavor com a situação. Não entendia da onde vinha a segurança de partir sozinha no meio da multidão. Temi por ela. Como podia uma menina, e naquela idade, não ter medo de um mundo tão grande a sua frente? Foi então que ela parou diante de uma criança de sua idade que chorava insistentemente sozinha, solitária, deserta e suja, esfregando uma das mãos na outra sem parar, num angustiante movimento de fricção como o de quem lava as mãos, de joelhos e com um melado descendo do pequeno nariz. A menina dourada de pureza insuperável, sem preconceitos ou discriminações, se inclinou e abraçou a criança que chorava de forma um pouco desastrada, encostou seu rosto no rosto dela e, ainda com os braços enlaçados na criança, lhe deu um beijo na bochecha.

A senhora, quando as alcançou, contemplou por alguns segundos a cena e depois colocou as mãos no joelho se inclinando para frente. Não notei se dizia algo à criança ou se recuperava o fôlego, mas isso já não importava mais. Senti um vento no rosto, percebi que o ônibus partia. Avistei de longe a senhora pelo seu andar, e de cada lado havia uma criança. Uma, era a menina iluminada de cabelos dourados e cacheados que tivera forças para ajudar mesmo não sabendo ao certo o que acabara de fazer; a outra, a criança que já não chorava mais e que não consegui distinguir se era menino ou menina.

Milhares de pessoas passavam naquele local, uma infinidade de histórias se cruzavam a todo o momento e se a menina não tirasse forças de sua pequenez a criança remelenta choraria até hoje na minha mente e nunca mais pararia, já que o ônibus partiria e não mais poderia voltar àquele dia, naquele instante. As duas pequenas mãos estariam se esfregando uma na outra numa angustiante repetição eterna como o que deve ter acontecido com a mendiga que até hoje está se balançando para frente e para trás sentada em algum lugar do Centro do Rio.

Perderia milhares de anos para achar força tão grande em tão pequeninos gestos, nas pequenas coisas, numa criança que olha uma folha pegar carona numa brisa. De fato tenho sorte.

Forças estão dentro de nós, tenho certeza. Não se preocupe comigo e termine seus estudos. A distância não apagará o que vivemos juntos. Parece repetitivo...mas é o realmente gostaria de dizer.

2 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhoso Leú!!!
Força sempre!!!
Determinação e coragem, tb...

Beijinhos
:)

Anônimo disse...

Incrível a capacidade que vc tem de nos fazer ver, com detalhes, cada cena do que vc escreve!!! Até dá para ouvir sua voz contando as histórias!!
Bom d+!!!
Continue assim menino!!!
bjão!!!