domingo, 28 de outubro de 2007

Metal abandonado.

Desde que caíra pela última vez não houve um minuto em que não se dedicou para ser aproveitado ao menos uma vez mais. Ele fora abandonado no pé de uma amendoeira, naquele pé, rodeado por terra escura, com marcas de homenagem canina de toda espécie: toda espécie de marcas, toda espécie de cães.

Trazia na face o desgaste, sinais que apontavam uma existência difícil. No dia em que o encontrei, um sol de deserto agredia quem se atrevesse a encará-lo. Céu azul, uma imensidão azul. A minha pele negra suava como cachoeira e para fugir da agressão do sol, olhava para o chão, asfalto inundado pela ilusão do calor.

Enquanto meu peito inflava e esvaziava pela exaustão dos meus esforços, colocava as mãos nos joelhos e percorria a via, somente com o olhar. Lá estava ele: o metal abandonado.

No momento em que o avistei, meu corpo relaxou, soltei muito do pouco ar puro colhido por meus pulmões e ergui a cabeça olhando para o céu. Não dava graças a nada, não agradecia nada, ao menos naquele segundo. Apenas descansava mais um pouco até começar a caminhar em sua direção.

‘Como é possível que alguém seja tão descuidado a ponto de perder um metal tão bonito?’ Pensei, enquanto me abaixava para pegá-lo. Segurei o entre os dedos e ergui até a altura dos olhos. A sujeira impregnada em sua face era obstáculo desprezível para impedir minha paixão. Permaneci hipnotizado por seis segundos.

Faltou-me coragem para colocá-lo no bolso. Minhas roupas eram sujas. Mantive-o na altura dos olhos. Foi quando lembrei da minha pulseira de barbante que carregava enrolada no pulso já há algum tempo, desde que ganhara um papel fedido de um motorista com semblante de anjo.

Havia amarrado o papel para que não o perdesse, já que aguardava ansioso a realização da profecia do anjo: ‘guarde e coma algo com isso’. Não bastasse minha pobreza, ter que carregar, como um amuleto, aquele papel fedido e sujo, era incompreensível, mas até então nenhum alimento surgiu para que, acompanhado do amuleto, suprisse minha fome e assim ver cumprida a profecia.

Imediatamente desamarrei o amuleto e amassando-o coloquei no bolso. A intenção era amarrar o metal para não cometer o mesmo erro de seu último dono. Só que a barriga doía demais e com aquela riqueza poderia me fartar num banquete. Resolvi dá uma forcinha para a profecia.

Virei a esquina caminhando para o bar do Ademir e quase tropeço num cidadão que se encontrava sentado no chão com a perna esticada. Era o Cumbuca. O infeliz vivia ali com uma camisa de linho de manga comprida, amarela encardida, rasgada na altura de um dos ombros. Ao seu lado uma cumbuca vazia que ele dizia ser mágica.

‘Mágica?’ Indaguei um dia desses. ‘Mágica sim! Tira o olho!’ Gritou. O cara-de-pau tentou me convencer que de tempo em tempo uma nuvenzinha escura sobrevoava a cumbuca e despejava uma pequena chuva de metais preciosos. ‘Balela!’, falei.

Até hoje eu não acredito, mas houve um domingo em que ele me levou para jantar com os irmãos dele. Ele arcou com a refeição de todos. Numa praça grande, todos os irmãos formaram uma fila imensa, cada um recebeu a comida num lindo recipiente prateado, foi uma festa. Coisa fina. ‘Deus o abençoe’ dizia a moça jovem que entregava o alimento, devia ser uma prima distante, pois o Cumbuca nem olhou para ela direito, pura vaidade do poder.

Quando vi o Cumbuca sentado naquela esquina lembrei desse dia de fartura. Não seria justo da minha parte não convidá-lo para me acompanhar. Dei duas bicudas na perna dele e o danado não acordou. Abaixei bem perto do seu ouvido: OH! CUMBUCA DOOOIDO! O safado se assustou e bateu com a cabeça na parede. Ha, ha, ha... Quase morri. Sério. Estava fraco por causa do calor e da fome, não consegui respirar por cinco segundos com a crise de riso que me acometeu. Fazia dois dias que não ria assim, de gargalhar.

- Seu narigudo maluco! Já não te avisei para não fazer isso. Agora a nuvem se dissipou! Inferno!
- Calma... Eu vim justamente te convidar para almoçar lá no Ademir.
- Vai sozinho...
- Por quê?
- O Ademir não me quer pelas redondezas por conta do porre de quarta.
- Você bateu nos clientes de novo?
- VAI, VAI, SAI DAQUI! SAAAI..., gritou.

Segui meu caminho, mas resolvi que traria um pouco de comida para o Cumbuca. O Ademir era um cara legal, mas quando ficava bravo dava umas tapas fortes na nuca da gente, o melhor para o Cumbuca era não aparecer mesmo. Andei de cabeça baixa fugindo do sol por uns dois quilômetros. Não avistei nenhum outro metal. ‘Puxa vida, o Ademir está fechado’.

- Seu Valdir?

Seu Valdir era um maluco que foi preso pela família real numa caixa de ferro e condenado a entregar papéis fedidos também, mas que contavam as histórias da cidade. Certa vez o Cumbuca apareceu num desses papéis, quando, depois de um porre, fora levado para passear com uns soldados da corte. Naquele dia não o vi dormindo na esquina.

- Fala Pelica, mas fala daí... Não... Vai para o outro lado, contra o vento... Isso! O que você quer? Resmungou Seu Valdir.

- Hoje vou à forra, Seu Valdir! Sou rico! Olha o metal que achei!

- Cruzado, Pelica?!? Ha, ha, ha... Só você mesmo para me fazer rir.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom Leozito!!!
Estou adorando todos!!!
Beijinhos

Frederico Alencar disse...

Se você continuar nesse ritmo vai acabar na Academia Brasileira de Letras. Gostei muito até onde li. Depois cansei. Não por causa do texto, mas porque minha vista está cansada de ler textos de "teoria da comunicação". Fazer o quê, né? Tenho prova na próxima terça.

Anônimo disse...

Como já te disse sua maneira de escrever e sua sensibilidade aos detalhes me encantam e me fazem nunca esquecer que são nesses momentos que realmente esta a vida!